Use
os seus dentes sem reservas. Para isso foram feitos. Mastigue coisas que
mereçam o nome: cenoura, bifes duros, rapadura, coco, que sei eu? Não me
compete lhe dar o cardápio. Agora, à noite, cautela. Não deixe que as sobras do
dia lhe subam à cabeça: dores de cotovelo ou outras menos nítidas, dívidas,
ódios não-realizados, são como pedregulhos essas marcas do sofrido – não se
quebram – você não as tritura – seus dentes serão triturados isso sim, gastos,
roídos ano após ano. Um dia quando se levantar e se olhar no espelho ficará
assombrado com a devastação. Como terra arrasada, um casario tombado em bombardeio. Aqueles
dentinhos de pérola, dirá sua mãe iludida em sua memória pois há muito tempo
não mais eram. Deus dos hominídeos, o que terá havido com sua arcada dentária
meu caro? Exclamará seu pai um paleoantropólogo aflito suspeitando que você
desde muito tenha usado dentes falsos de resina orgânica e não de osso humano,
sem participação aos íntimos. Dentes comidos pelo ácido do sofrimento – lhe
dirá o novo dentista (o antigo você o terá posto de lado por não lhe ter dado
aviso) homem o seu tanto poeta dentro da profissão tão comedida. Mas será tarde
então. O seu caso é de bruxismo digo-lhe, eu não-especialista, mas um estudioso
no assunto. Não se espante: um termo especial usado para definir como certas
criaturas rangem os dentes à noite, como se fossem almas no inferno, como se
fossem almas danadas arrastando correias, penando, penando sem remissão dos
pecados! Não tema! Coloque no lugar certo enquanto for tempo um acessório de
plástico, coisa não muito cara, engenhosa. Com isso, essa simples peça, você
amortecerá a queda dos pedregosos problemas do dia em sua boca, o travamento
dos dentes um no outro. Seus dentes
ficarão a salvo dessa tempestade noturna que insistentemente se abate sobre sua
dentadura, uma estrutura hoje, reconheço, que mal sobrevive se penso nas mandíbulas do Homo Erectus
Pekinensis (em uma discreta homenagem a seu pai). Em suma: encerramos o tema
por ora. Disse o que tinha a dizer, o que me cabia. Mas não me peça. Falávamos
principalmente de dentes. O dia, o dia, com a insopitável carga de sofrimento
não-biodegradáveis, as mágoas, subindo, subindo no elevador da noite, ascendendo
sem termo, sem cubículo que as receba e as consuma no sono; as mágoas, as
mágoas do mundo não tem um corpo definido, uma estrutura fixa como uma arcada –
delas eu não sei.
Zulmira Ribeiro Tavares – editora
brasiliense – O Mandril - 1988