terça-feira, 9 de outubro de 2012

Crônica: Bruxismo.



                Use os seus dentes sem reservas. Para isso foram feitos. Mastigue coisas que mereçam o nome: cenoura, bifes duros, rapadura, coco, que sei eu? Não me compete lhe dar o cardápio. Agora, à noite, cautela. Não deixe que as sobras do dia lhe subam à cabeça: dores de cotovelo ou outras menos nítidas, dívidas, ódios não-realizados, são como pedregulhos essas marcas do sofrido – não se quebram – você não as tritura – seus dentes serão triturados isso sim, gastos, roídos ano após ano. Um dia quando se levantar e se olhar no espelho ficará assombrado com a devastação. Como terra arrasada, um  casario tombado em bombardeio. Aqueles dentinhos de pérola, dirá sua mãe iludida em sua memória pois há muito tempo não mais eram. Deus dos hominídeos, o que terá havido com sua arcada dentária meu caro? Exclamará seu pai um paleoantropólogo aflito suspeitando que você desde muito tenha usado dentes falsos de resina orgânica e não de osso humano, sem participação aos íntimos. Dentes comidos pelo ácido do sofrimento – lhe dirá o novo dentista (o antigo você o terá posto de lado por não lhe ter dado aviso) homem o seu tanto poeta dentro da profissão tão comedida. Mas será tarde então. O seu caso é de bruxismo digo-lhe, eu não-especialista, mas um estudioso no assunto. Não se espante: um termo especial usado para definir como certas criaturas rangem os dentes à noite, como se fossem almas no inferno, como se fossem almas danadas arrastando correias, penando, penando sem remissão dos pecados! Não tema! Coloque no lugar certo enquanto for tempo um acessório de plástico, coisa não muito cara, engenhosa. Com isso, essa simples peça, você amortecerá a queda dos pedregosos problemas do dia em sua boca, o travamento dos dentes um no outro.  Seus dentes ficarão a salvo dessa tempestade noturna que insistentemente se abate sobre sua dentadura, uma estrutura hoje, reconheço, que mal sobrevive  se penso nas mandíbulas do Homo Erectus Pekinensis (em uma discreta homenagem a seu pai). Em suma: encerramos o tema por ora. Disse o que tinha a dizer, o que me cabia. Mas não me peça. Falávamos principalmente de dentes. O dia, o dia, com a insopitável carga de sofrimento não-biodegradáveis, as mágoas, subindo, subindo no elevador da noite, ascendendo sem termo, sem cubículo que as receba e as consuma no sono; as mágoas, as mágoas do mundo não tem um corpo definido, uma estrutura fixa como uma arcada – delas eu não sei.

Zulmira Ribeiro Tavares – editora brasiliense – O Mandril - 1988

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